quinta-feira, 16 de abril de 2020

Querida

Recebo a sua carta como quem deseja uma taça de vinho. Mas nesses tempos de guerra invisível degustar um vinho se tornou uma travessia entre territórios inimigos.
Por aqui não faltam coisas, falta presença.
Danço o caos do vazio, sinto cada vez que a morte me convida a uma improvisação e que ela conduz o acontecimento. Por mais absurdo que seja, não tenho medo da morte. Dançar a morte manifesta o que tenho de mais humano. Sinto como sísifo, carregando a sua pedar morro acima todos os dias. E repito esse passo de dança, e repito, e repito. Como já disse Manoel de Barros: “Repetir, repetir, repetir... Repetir é um dom do estilo.”
Meu estilo é uma dança do delírio.
Delirar... ah sim! Deliro nessas palavras como quem delira ao dar piruetas em diagonal! Sou dançarino de mim mesmo, meu lirismo dança nessas frases que dedico a você. Sim, dedico essa dança da morte a tu, Dianna.
Desejo que receba essa carta de dança como quem degusta uma torta de biscoito de chocolate. Sinta que danço com você como a respiração e as batidas do coração que estão presentes em seu agora. Como um pequeno prazer da vida em tempos de distanciamento.
Todos esses dias quando acordo sempre me pergunto: o que vamos pensar sobre isso tudo no futuro?
Já não sei mais o que é futuro. Na verdade, tenho a sensação de que AGORA compreendo o que é medir o tempo.
Tempo de acordar, comer, falar, escutar, dançar...
Ah sim, a dança! Dancemos nessas palavras uma sagração ao outono! Nasci no outono e este com certeza é o que mais sinto em meu corpo. Sinto que tudo faz sentido no outono.
Como ciclo vital, sinto o tempo do agora pulsando em cada célula do meu corpo como que mapeando este território único que posso percorrer. Tenho vontade de traçar cartografias de mim mesma. Reteritorializar meu corpo, minha dança.
Fico pensando que talvez, se isso tudo passar, vamos reterritorializar nossas danças para além da Avenida do Contorno. Sim, essa cidade dá piruetas no mesmo lugar fazem muitos anos. Precisamos decolonizar nossos territórios, nossos corpos. Temos que nos apropriar de nossas estéticas de margem.
Quero traçar cartografias intelectuais da minha dança. Quero manifestar no corpo minhas próprias escrituras. Quero enviar cartas à quem me enxerga. Quero sentir gozar com minhas próprias mãos.
Sinto que ao te escrever gozo de mim.
  
 Nossas cartas me provocam.
Também não desejo respostas. As perguntas é que me movem.
Agradeço por dançar junto.
Agradeço pela janela aberta.

Lua no outono.

PS: Fico com a imagem do seu navio em pleno mar aberto. É sobre disso que se trata.

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